16/10/12

dias a meio e fins de dia com procissão


Nada mais do que laranjas a brilhar ao longe. Roupa estendida, sem queixumes por haver vento na aldeia vizinha. Chega agora o fim do dia, hora de conforto e fronteiras lassas. Haverá alguém que retire o pão do forno para ser lido todo aquele cheiro a casa de tias, com canecas em prateleiras festivas a celebrar revolução no país ao lado. Passou ali procissão, no ano passado, dia de visita pascal feita pela culpa antecipada de morrer toda a família e não se ter olhado uma última vez tudo aquilo com todos vivos. É sempre dia de qualquer coisa, dia de fim. É sempre fim de qualquer coisa e morre sempre mundo por se perder algo dele. No ano passado passou a procissão e todos na rua, com luzes eléctricas amarelas, murchas, a chamar contrabando. Todos como se Deus estivesse ainda vivo e não fosse já um último acto repetido em ensaio final. É hora de adjectivos. A camisa fora das calças do primo mais velho, a mão paralela à perna, o cigarro a meio de queimar entre dois dedos. Passa a procissão e o primo mais velho não fuma em sinal de respeito. Agonia de cigarro em dia de ensaio itinerante de Paixão, com banda filarmónica de recurso. Sorri em desafio e o primo olha para baixo com ar de Está quieto, não vês que passa a procissão? Imita o primo e pensa nas laranjas sem culpa, à entrada da aldeia, e na azinheira que ladeava o sinal de trânsito a avisar de perigo por poderem andar animais à solta. Termina a procissão e acende o primo outro cigarro enquanto lhe sai a cara de reprovação. Há que ser sério quando se vê teatro e, se calhar, quando se recolhe a roupa para que não comece a embeber a humidade da noite e o cheiro ao fumo das casas todas com fogo controlado. Retira-se a roupa, vacina para humidade, e come-se o pão à volta de mesa redonda, entre coisas como conversas, com pratos de esmalte brancos, debruados a azul e ferrugem, meio cheios de cozido de grão. Chegou a noite e, com ela, o sortilégio de ficar ali a saber coisas que podiam ser descritas, se alguém as visse: três pardais no varão ao lado do poço, no quintal; as irmãs solteiras ocultas na foto do casamento da irmã mais nova, na vitrine de canto, mesmo em frente; as migalhas do lanche debaixo da toalha que se pôs na mesa para o jantar. Virão algumas histórias, suspiros, queixumes, tudo com moderação e um Vamos deitar que se faz tarde... Lá fora, ao lado dos pardais, num banco de pedra, o primo lê um livro de filosofia e fuma um cigarro com a cabeça encostada à mesma mão que segura o cigarro. Pode-se fumar por respeito à filosofia mas não quando passa a procissão porque Parece mal. Lê o primo o livro, ensaia o ser filósofo inspirado por fumo e ar de noite. Morreu o cão de olhos pequenos que costumava ler livros com o primo e não veio outro cão para o seu lugar. Fim do cão, fim do mundo com o cão. Desde Fevereiro que o mundo deixou de ser como era com o cão e ninguém disse nada. Passa a luz pelo candeeiro a petróleo. Roda, à ladrão, o manípulo da torcida para aumentar a intensidade da luz. A chama alta vai borrando de preto a chaminé do candeeiro. Olha-o a tia mais velha Outra vez, diabo dissimulado? Não fala assim a tia mas ouve-a assim, não é a mesma coisa o que sai e entra, por mais que pese o mesmo e cheire à mesma coisa. Olha a luz que passa pela zona escura da chaminé e inventa histórias com as formas que vê. A sujidade na chaminé incomoda a tia e vai perturbá-la até conseguir lavar a chaminé. Lava a tia roupa, o candeeiro e tudo o que pode, excepto a noite. À noite, soube-o ele uns dias mais tarde, ninguém a pode lavar Porque ela esconde o espaço entre as páginas da história do fim do mundo.

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